Recordações

Como muitas das mais belas histórias, esta começa no lixo. Mais especificamente numa pilha indiscriminada de tralhas numa loja de velharias.

Na verdade, a dita loja é mais um armazém onde o proprietário, que se dedica à compra de recheios de casas, despeja regularmente o seu semi-reboque basculante com toneladas das mais diversas coisas. É triste mas nestas incluem-se com frequência memórias de família, como postais escritos e álbuns de fotografias.

Estes e outros itens similares por lá espalhados, incluindo todos os livros, são considerados de pouco interesse e por isso vendidos a 1 euro. Eu procuro sobretudo revistas e jornais, em particular de âmbito local e regional, pois é aí que se escondem muitas pessoas e acontecimentos que não mereceram lugar em nenhum livro de história, nem que fosse na mais breve nota de rodapé. Para sorte minha, por serem documentos mais finos do que os livros, 1 euro dá para uma série de exemplares.

Certa manhã de sábado regressei à loja e deparei-me com tudo revirado. Um cheiro a mofo e podridão predominava no ar enquanto os animais vasculhavam os sacos rasgados pelo chão. Tinha chegado um novo carregamento! E foi aí que, entre uma “Revista TV Guia” e uma caderneta “Panini Futebol 94-95 Estrelas do Campeonato”, encontrei umas folhas desgastadas em que a capa dizia simplesmente “Recordações de Santa Luzia”. Fiquei com expectativa que fossem memórias sobre a barragem de Santa Luzia na Pampilhosa da Serra. E eram.

Se te estás a perguntar porque é que alguém haveria de ficar entusiasmado com o que quer que seja sobre uma barragem, então é porque ainda não tiveste a sorte de ouvir falar sobre os barragistas e as inúmeras histórias reais alusivas às primeiras construções deste tipo em Portugal. Este não é o sítio para escrever sobre esse assunto, mas os acontecimentos associados à edificação da barragem de Santa Luzia dariam um bom romance. [1]

1939 — “Verifico importantes erros na implantação da Barragem. A Companhia solicita a comparência do prof. Stucky, autor do projecto em execução. Este não pode vir. A Companhia entrega o assunto a André Coyne que aceita a incumbência e vem.”

25/01/1944 — “A política geral vejo-a bastante feia. O Salazar vai perdendo bastante terreno. Aqueceu demais o lugar.”

12/04/1944 — “Li há dias «O Pequeno Herói» de Dostoevsky e o «Diálogo sobre a Justiça», de Platão. Os russos avançam e a vida encarece.”

27/06/1944 — “O pessoal chega em quantidade à Serra, temos uns quinhentos homens. No outro dia tive que bater num empregado, Mota Veiga, e pô-lo fora.”

30/11/1944 — “Hoje atravessei a fronteira e fui a Espanha. Fui com um contrabandista simpático.”

31/01/1946 — “Eram 3h e 55m quando Ele chamou a si, a Lixa querida.”

Um diário é o mais próximo que temos de uma máquina do tempo. É um registo de um passado que não foi escrito no presente. Podemos confiar que seja um registo honesto quando o público-alvo da escrita é o próprio escritor. Ao ler um diário, por mais distante que seja temporalmente ou geograficamente, percebemos que nós, seres humanos, somos todos iguais, com os mesmos desejos e medos. O diário é uma janela para o dia-a-dia de alguém que poderíamos ser nós próprios, noutras circunstâncias, e isso é algo que não encontramos nos livros de história. E por essas razões é-nos mais fácil empatizar com o autor e sentir a escrita de um modo mais pessoal. Talvez seja por essa razão também que um diário, o de Anne Frank, seja um dos livros mais lidos de todos os tempos.

Não me quero alongar muito mais sobre as memórias que estão nessas páginas, mas haveria imenso a dizer. Por exemplo, sobre quando o autor conheceu um “médico de Coimbra”, o Dr. Adolfo Rocha. Ou quando recebeu um “professor apaixonado por Geologia” chamado Orlando Ribeiro. Ou mesmo dos momentos que passou com o engenheiro francês André Coyne, pioneiro no desenho e construção de barragens-abóbada. A razão pela qual trago para aqui essas folhas é a nota inicial, adicionada à posteriori:

“Qual terá sido o motivo que me levou a compôr este folheto? [2] Por que razão? Qual o porquê? Estas e outras interrogações do estilo põem-se à minha ponderação. A mim próprio peço uma resposta. Peço-a franca. Sincera. Dada sem constrangimentos. Sem acanhamentos.”

Tenho tendência a adiar e menosprezar o registo das minhas memórias, e sobretudo de as partilhar publicamente, nem que seja somente o que vou aprendendo no dia-a-dia. E pergunto-me se não é pretensioso imaginar que posso acrescentar algo ao mundo ao falar sobre a minha limitada vivência (especialmente enquanto começa, novamente, uma guerra na Europa). Mas nesse documento está presente esse mesmo contraste: “Deixei de fumar” aparece a par com “A guerra continua e os alemães resistem”. A Luisinha passou “a ir à escola de S. Romão” no dia em que “foram cedidas as bases dos Açores”.

“[…] o folheto é o respigo do que referes num Diário que redigiste entre as tuas trinta e uma e trinta e oito primaveras; reporta-se àqueles anos em que, possuindo juventude, todo e qualquer pessimismo era diluído pela esperança […]”

“[…] senti grande pena em não ter começado o meu Diário mais cedo e até, talvez, de não lhe ter dado continuação. O nosso próprio Diário, concordo hoje, não tem apenas o merecimento de constituir uma recordatória. Bem consideradas as suas valias verifica-se que ele concorre sempre, e de forma positiva, para o conhecimento da nossa própria personalidade e torna mais leve a aceitação da sorrateira vinda da velhice.”

Escrever sobre nós próprios permite-nos reflectir sobre a nossa mortalidade e a efemeridade de tudo o que damos por garantido enquanto prosseguimos distraidamente com as nossas rotinas. [3] Por outro lado, escrever sobre um assunto do nosso interesse obriga-nos a formalizar os nossos pensamentos e, como consequência, a compreendê-lo e a memorizá-lo melhor.

É isso que me proponho fazer aqui.


  1. Sobre este assunto incentivo a leitura dos artigos de Júlio Cortez Fernandes na sua página Aguadouro, mas salienta-se:

    • Uma iniciativa privada que durou cerca de uma década e que envolveu várias centenas de trabalhadores, com o objectivo de electrificar uma das maiores minas de volfrâmio do mundo de forma a acelerar a extracção deste minério, fundamental para a guerra, e que era simultaneamente vendido aos aliados e alemães;
    • Após um plano falhado de uma barragem de arcos múltiplos, André Coyne desenhou esta que foi a primeira grande barragem-abóbada de Portugal;
    • Erros de cálculo obrigaram à construção de um túnel de 7km que liga dois rios;
    • Um engenheiro francês debateu-se em vão para obter uma autorização de entrada em Portugal para a sua tia, alegadamente por as autoridades a julgarem ser de origem judaica;
    • Um pároco terá morrido de ataque cardíaco enquanto defendia a causa dos habitantes de uma aldeia que acabou submersa.
    ↩︎
  2. É um “folheto” porque se trata de uma cópia de apenas uma parte do diário, que terá sido feita para deixar a familiares. Na mesma nota inicial o autor recomenda “aos netos que não deixem de fazer o seu Diário e que o iniciem ainda moços, não vão arrepender-se como eu de o não ter começado ainda jovem. Como entendo hoje os que afirmam que também se vive quando se recorda!” ↩︎
  3. Memento Mori é uma dessas expressões pomposas em latim que vai aparecendo aqui e ali e que significa aproximadamente “lembra-te que vais morrer”. Não foge muito a outra expressão latina mais popular, Carpe Diem. Se bem que, no meu entender, a primeira é menos propensa a ser mal interpretada. Isto porque Carpe Diem, “aproveita o dia”, é muitas vezes lida como um incentivo a viver de forma inconsequente e sem preocupações com o amanhã. Todavia a ideia não é deixarmos de planear o futuro, mas sim de apreciarmos o presente enquanto o fazemos. ↩︎