Viver Mais

Aquele diário da última publicação incentivou-me a procurar mais sobre o seu autor. Essa pesquisa guiou-me até um texto que toca em três aspectos importantes das nossas vidas: agência, tempo e trabalho.

Na minha aldeia existem 42 casas. Talvez por isso a rede eléctrica tenha demorado tanto a cá chegar. Aqui a electrificação teve início em 1963 e só chegou às habitações mais escondidas no final de 1975. A luz na rua, essa só apareceu em 1979.

Se cresceste como eu com energia eléctrica em casa, talvez nunca tenhas parado para pensar a fundo no que significa viver sem luz. É fácil tomarmos como garantidas certas tecnologias com as quais sempre vivemos. Para a minha geração a electricidade é uma delas. Provocou uma mudança tão drástica na sociedade que nos é impensável imaginar o quotidiano sem ela. No entanto, para termos electricidade em Portugal foi imprescindível o esforço e a dedicação de alguns visionários e o sacrifício de imensos trabalhadores.

O diário “Recordações de Santa Luzia” foi escrito pelo engenheiro José Guedes Pinto Machado. A informação que consegui reunir foi pouca mas encontrei uma colecção de artigos publicados pelo mesmo na revista “Electricidade”. Vou partilhar a maior parte de um artigo que tem o título “Viver Mais” e que toca nalguns conceitos que são hoje tão ou mais relevantes que em 1965, altura em que o texto foi publicado. São eles a agência, o tempo e o trabalho.

Agência #

“Participar na criação do Mundo é um privilégio do Homem. Talvez por isso criar é a tarefa que mais o acontenta: nenhuma outra lhe enche tanto o coração de alegria; nenhuma outra lhe mostra melhor a estatura da sua personalidade […]

Mesmo quando criar o obriga a esforços penosos, mesmo em tal caso, o seu coração baterá contente, todas as penas morrendo afogadas no sentimento de «missão bem cumprida» presente em toda a acção criadora.”

Conta-se que Fernando Pessoa escrevia muitas vezes em pé, num estado quase de transe, de tal forma compenetrado que se esquecia de tudo o resto. São vários os relatos do tipo em biografias de personalidades que se destacaram nos seus respectivos campos. Davam por si tão absorvidos que se esqueciam até de comer, dormir ou tomar banho. A esse estado de foco, de emersão na criação de algo novo, seja esta uma actividade artística ou não, dá-se o nome de fluxo. Sabes certamente do que estou a falar.

Seja no teu trabalho, se tens a sorte de ter um emprego que te proporcione isso, ou num passatempo que tiveste em adulto ou em criança, quando se têm objectivos claros e atingíveis e as nossas acções têm efeitos imediatos e gratificantes, é plausível proporcionar-se esse estado. Lembras-te do tipo de satisfação que te trouxe? Em que uma hora parece passar em apenas alguns minutos, em que apesar do cansaço te sentes intelectualmente activo? O quanto, com mais ou menos esforço, te foi possível criar?

Já Seneca no ano 65 A.D. mencionava a satisfação que nasce num criador pela sua própria absorção, “quando toda a sua atenção é dedicada à concentração no trabalho em que está envolvido”. O filósofo acreditava que “nunca volta a existir a mesma gratificação após levantada a mão do trabalho terminado”. Mihaly Csikszentmihalyi, o psicólogo que desenvolveu a teoria do fluxo, considera ser este o segredo para a felicidade e realização humana.

Tempo #

“Mas a vida do homem é breve. O tempo de que dispõe para criar é por isso reduzido. Não o poupar seria insensato, tanto mais que se há coisa irrestituível é o tempo. Lá diz [Padre António] Vieira: «a fazenda pode restituir-se; a fama ainda que mal, também se restitui, o tempo não tem restituição alguma».

De acordo com esta realidade os responsáveis que exercem posições de comando têm por dever esforçar-se por conseguir que a vida social se organize em moldes que o máximo do tempo de vida o possam os homens ocupar em acções de criar. É logo a partir de criança que o tempo deve ser poupado. Tenha-se presente que o que na infância for poupado será revertido aumentado em adulto. Visando este propósito deve-se desde muito cedo cuidar de contrariar a natural tendência dos homens a tornarem-se, por preguiça, espectadores do Mundo e ajudá-los através duma educação dada de forma aliciante e alegre a que eles, ao invés, se mostrem elementos activos da criação do Mundo.”

Segundo o psicólogo Mihaly, para atingirmos o estado de fluxo é preciso deter o controlo total da actividade que temos em mãos e existir um equilíbrio entre o nível de desafio e da nossa capacidade. Isto é, que a actividade seja desafiante mas atingível. Podemos portanto alcançar um estado de fluxo quando nos sentimos simultaneamente excitados e desafiados por uma tarefa. No entanto, se o desafio for demasiado grande o resultado pode ser o inverso e induzir sentimentos de ansiedade. Sentires-te inquieto, no limite, sem sono, com o coração acelerado, o corpo tenso e a transpirar… É interessante como estes sintomas podem descrever tanto a excitação como a ansiedade. Aparentemente o que muda é psicológico: a forma como interpretamos a situação.

São precisas imensas horas de prática para dominar qualquer que seja a arte. São necessárias milhares de horas para se ser um bom escritor, pintor, violinista, carpinteiro, programador, no fundo, qualquer que seja o ofício. Há quem dedique a vida inteira a aperfeiçoar a sua mestria num determinado campo. Voltando a Fernando Pessoa, já escrevia poemas, e até concebeu o seu primeiro heterónimo, aos seis anos de idade.

O tempo é portanto um factor importantíssimo que corre contra nós. A prática requer tempo. Mas praticar o quê? Ou, de uma forma mais abrangente, como é que se descobre o que se quer fazer na vida? Não faço ideia. É-nos dito que devemos seguir a nossa paixão, o que não ajuda nada se não soubermos à partida qual é a nossa paixão. E voltando à teoria do fluxo, será correcto concluir que é possível tirar prazer de qualquer actividade desde que a dominemos suficientemente bem? E se assim for, será então viável apaixonarmo-nos por qualquer empreendimento desde que lhe dediquemos tempo suficiente? Isto é, que não importa então em que é que escolhemos trabalhar?

Neste contexto é preciso, penso eu, não ignorar completamente a natural aptidão que cada um de nós tem para certas tarefas. Os nossos talentos podem igualmente não ser triviais de descobrir. De acordo com o filósofo Agostinho da Silva “só o fazer é realmente educativo”. É preciso investir tempo na nossa curiosidade. Por último, pode-se argumentar que ser bom nalguma coisa (ao ponto de conseguirmos sentir o estado de fluxo quando a desempenhamos) não é condição suficiente para nos sentirmos realizados a longo prazo. Será, por exemplo, possível alguém sentir-se completo se aquilo em que é bom e ao qual dedica a sua vida é aplicado em algo completamente inútil? Se não tem qualquer impacto positivo, ou pior ainda, tem um efeito negativo no mundo que o rodeia?

A escola poderia ter aqui um papel fundamental. Seria capaz de criar as condições necessárias para que consigamos responder a algumas destas questões. Passamos pelo menos doze anos na escola, tempo suficiente para explorar e criar diferentes interesses. A adolescência acima de tudo poderia ser um período excepcionalmente criativo, de descoberta despreocupada sem racionalizar qual o seu destino concreto. Trata-se de uma fase em que, idealmente, não se têm ainda responsabilidades aos ombros e em que se dedica todo o tempo à aprendizagem. E poderia portanto ser admissível explorar múltiplas disciplinas e cometer todos os erros inevitáveis e necessários à criação, e por consequência, à aprendizagem.

Infelizmente, nos meus tempos de escola cometer erros não era incentivado. Pelo contrário, era indesejável. Para além disso, os conteúdos eram compartimentalizados em disciplinas estanques, formando um ambiente que é contrário ao necessário à invenção, em que a interdisciplinaridade é como sabemos tantas vezes chave. Ao separarmos as disciplinas e normalizarmos os seus programas tornamos as salas de aula numa espécie de laboratório, em que as experiências são conduzidas de forma angustiantemente controlada: “Nenhum exercício põe um problema de vida, nenhum se refere à vida” comenta Agostinho da Silva. Cria-se o oposto do mundo real. Fabricam-se trabalhos de casa que em nada se assemelham aos problemas reais que existem no mundo e que continuam por resolver. Limitamos ainda os assuntos aos quais os jovens se podem dedicar, cortando-lhes tantas vezes o acesso aos seus próprios interesses, o que é um contra-senso porque as crianças e jovens, quando devidamente motivados para um tema, aprendem naturalmente, sem necessidade de acompanhamento. Isso é a base do método Montessori, em que os alunos (nomeadamente do ensino pré-primário) são incentivados a explorar o que os entusiasma e em que o professor tem principalmente o papel de fornecer as condições necessárias a essa exploração.

Até atingirem a idade adulta, relegamos os nossos filhos a um mundo faz de conta, sem uma função determinada na sociedade. Nada do que fazem tem qualquer vislumbre de aplicabilidade prática. “Cortamos-lhe quase toda a actividade criadora, como se a criança pudesse verdadeiramente aprender aquilo que os outros fazem por ela” refere Agostinho da Silva. “Participar na criação do Mundo é um privilégio do Homem” dizia José Machado, mas nós negamos esse privilégio aos nossos filhos.

Dito isto, é muito fácil criticar o sistema de ensino. Mais difícil é apresentar soluções. Em especial, é fundamental não ir numa direcção que nos leve ao retrocesso, em que se incentive ou admire o trabalho infantil. Mas a situação actual é, parece-me, em parte responsável por criar jovens adultos desmotivados, insatisfeitos e com baixa auto-estima. “São eles os que depois se lamentam da maldade do mundo e substituem ao ímpeto viril de o modelar uma sombria resignação ou um desespero que os aniquila”, afirma Agostinho da Silva, “a confiança da criança em si mesma, o saber que é capaz de praticar um certo número de actos, o conhecer também pelo exercício as suas limitações, os meios de as vencer, dão-lhe uma consciência de personalidade, uma noção do valor próprio que a não deixarão submeter-se mais tarde a ordens arbitrárias e injustas”.

Hoje a internet não só é uma fonte inesgotável de informação. Mais do que de consumo, é um lugar que oferece inúmeras ferramentas de criação. Talvez por isso se tenha tornado num escape para as gerações mais novas.

Trabalho #

“No aspecto restrito do aproveitamento do tempo, em si, têm particular importância os horários de trabalho. Na verdade o rendimento da vida social é condicionado por estes e muitos foram estabelecidos segundo necessidades actualmente ultrapassadas de modo que se desperdiça assim tempo que poderia com vantagem ser distraído para a acção.

Todo este magno problema do tempo que a vida consente aos homens para criar deve merecer o maior cuidado daqueles a quem incumbe a organização da vida das gerações futuras. Viver mais para criar mais […]”

Muito se tem dito sobre as potenciais vantagens e perigos do rendimento básico incondicional e universal. Há quem defenda que, se porventura criarmos uma sociedade em que existe este ou outro qualquer mecanismo que torne o trabalho opcional ou que reduza drasticamente o horário de trabalho (que neste momento nos ocupa em regra oito horas, ou seja, um terço do dia), que isso deixaria as pessoas preguiçosas. E, mais grave ainda, causaria maiores níveis de insatisfação ou até depressão e doenças associadas, que já são hoje uma preocupante e significativa fatia da mortalidade. Penso que a pandemia terá revelado o oposto. Foram muitos os casos a que assistimos de criatividade por parte daqueles que conseguiram algum tempo e energia extra resultantes do seu confinamento. Citando mais uma vez Agostinho da Silva, a sua posição é que “temos que pensar numa economia, numa sociedade, em que qualquer tipo seja reformado à nascença” e que saiba imediatamente que “quem não faz nada morre depressa”, e que portanto deve procurar “naquilo que é, naquilo que sente do mundo, o que é que gostaria de fazer” — “Não trabalhe nunca; por favor esteja sempre ocupado”.

Existem hoje áreas, como na tecnológica, em que já há um vislumbre do que poderia ser um mundo assim, em que há larga oferta de trabalho remoto, com melhores salários e possibilidade de horários flexíveis e a tempo parcial. Um indivíduo com essa sorte, acompanhada de alguma frugalidade, pode viver sem se sentir constantemente preocupado com o que acontecerá se perder a sua fonte de rendimento. O que tem por consequência dar-lhe a possibilidade de até escolher, calmamente, em que é que pretende trabalhar. Essa capacidade de escolha é preciosa.

É preciso no entanto, se e quando essa oportunidade se apresentar, saber agarrá-la. Dizem que viver consiste em saber tirar partido das oportunidades que se nos apresentam. Infelizmente, nem todos temos acesso às mesmas oportunidades. Muito pelo contrário, as oportunidades são distribuídas de uma forma extremamente desigual. Se és como eu, talvez já tenhas desperdiçado algumas oportunidades, por não saber o que quer verdadeiramente ou por viver de acordo com as expectativas dos outros. A questão do trabalho está tão enraizada socialmente e culturalmente que é difícil fugir ao normal e não ser visto com desconfiança. Atribuímos-lhe tanta da nossa identidade que nos sentimos inúteis se estivermos desempregados e desconfortáveis se não trabalharmos tanto como os nossos pares e se não aspirarmos ao mesmo.

O que é que eu gosto realmente de fazer? Demorei imenso tempo a descobrir. É realmente um privilégio poder criar, de poder ser mais do que um mero espectador. O mundo que nos rodeia foi moldado por pessoas como tu e eu. É fácil esquecermo-nos disso. Se tens essa oportunidade, haverá melhor forma de aproveitar o pouco tempo que te resta?